Entre a Ilusão e o Prejuízo: lógica e efeitos do "quase-ganho" na indústria de jogos
- Marcelo Samos de Guardia e Roberta Muramatsu
- 24 de mai.
- 5 min de leitura
Por Marcelo Samos de Guardia e Roberta Muramatsu
Perder por pouco em um jogo de azar pode, à primeira vista, parecer apenas frustrante. No entanto, essa experiência frequentemente desperta no jogador um impulso quase irresistível de continuar apostando. Essa contradição intrigante desafia nossa intuição e revela um mecanismo psicológico cuidadosamente explorado pela indústria dos cassinos: o efeito do "quase-ganho". A sensação de estar "perto da vitória" ativa áreas do cérebro associadas à recompensa, promovendo uma persistência no jogo que transcende à lógica da escolha racional.
Este artigo explora por que perder por pouco pode ser mais viciante do que ganhar, analisando as estratégias comportamentais por trás dos jogos de azar e discutindo as implicações sociais e econômicas dessa dinâmica perversa adotada pelos cassinos e plataformas de jogos online.
A explicação para esse fenômeno reside no efeito quase-ganhar (near-miss effect). Estudos mostram que indivíduos que experimentam perdas muito próximas de uma vitória sentem-se altamente motivados a continuar jogando, apresentando reações neurofisiológicas semelhantes às que ocorrem em situações de ganho real (Reid, 1986). Pesquisas de neurociência de Foxall e Sigurdsson (2021) confirmam que a experiência do "perder por pouco" ativa as mesmas áreas de recompensa do cérebro, gerando excitação e motivação para persistir, mesmo após uma sequência de perdas. Como resultado, uma perda próxima de um acerto funciona como um reforço positivo, criando uma armadilha emocional difícil de romper.
A persistência no jogo, mesmo em cenários de perdas subestimadas, também se explica pelo viés comportamental da "ilusão de controle" (Kahneman, Slovic e Tversky, 1982). O jogador superestima sua influência sobre o resultado de um jogo puramente aleatório, acreditando que pequenas variações de comportamento podem aumentar suas chances de vitória. Assim, o "quase-ganho" não apenas alimenta esse engano, mas também reforça um comportamento que se retroalimenta e que, sem o devido controle, pode evoluir para o transtorno do jogo, uma questão de saúde pública cada vez mais reconhecida no Brasil (Chaves, 2024).
O que torna esse ciclo ainda mais preocupante é que esses mecanismos não são acidentais. Longe de serem falhas inocentes no design dos jogos, eles são fruto de estratégias deliberadas de arquitetura de escolha nocivas, as chamadas "dark nudges" (Newall, 2019). Essas táticas manipulam vieses cognitivos com o objetivo explícito de maximizar o tempo e o dinheiro gastos pelos jogadores.
As máquinas caça-níqueis, por exemplo, são projetadas para criar uma experiência sensorial envolvente, combinando luzes vibrantes, sons estimulantes e feedbacks positivos mesmo em situações de perda. Isso gera as "perdas disfarçadas de ganhos", onde o jogador perde dinheiro, mas recebe estímulos que imitam uma vitória. O mesmo princípio se estende às plataformas de apostas online. Com acesso a dados detalhados sobre preferências, hábitos e rotinas de seus usuários, elas conseguem personalizar arquiteturas de escolha tentadoras, levando os indivíduos a acreditarem que oportunidades de altos ganhos monetários estão sempre disponíveis — a qualquer hora, em qualquer lugar (Behavioral Insights Team, 2022).
No Brasil, essa realidade é ainda mais alarmante devido à popularização das apostas esportivas. Este mercado, que se expandiu rapidamente após sua regulamentação em 2018, movimenta cifras bilionárias, muitas vezes às custas de jovens adultos de baixa renda que buscam, nas apostas, uma promessa ilusória de ganhos e ascensão social (Banco Central do Brasil, 2024). Enquanto o jogador acredita estar no controle, ele é, na verdade, manipulado por sistemas cuidadosamente desenhados para aumentar a frequência e a intensidade do comportamento de risco.
Esse cenário torna urgente a reflexão sobre as consequências sociais e econômicas dessa indústria que, embora vendida como mero entretenimento, tem se mostrado uma poderosa engrenagem de prejuízo à saúde emocional e financeira de indivíduos e da sociedade. No Brasil, a situação é particularmente delicada. De acordo com um levantamento recente da revista FAPESP, cerca de 11 milhões de brasileiros já apostam de forma que compromete a alocação eficiente de recursos e o bem-estar individual e social (Chaves, 2024).
O mais alarmante é que esse comportamento problemático atinge, de forma desproporcional, as camadas mais vulneráveis da população, especialmente os jovens de baixa renda. Em regiões como Norte e Nordeste, as taxas de jogadores de risco são significativamente mais altas (Banco Central do Brasil, 2024). Alimentados por campanhas publicitárias agressivas nas redes sociais, que associam apostas a sucesso, status e poder, esses indivíduos acabam imersos em uma lógica perversa que promete uma saída fácil para dificuldades econômicas, mas que, na prática, apenas aprofunda ciclos de perda, frustração e privação material.
Diante do reconhecimento dessa complexa engrenagem comportamental, surge uma questão inevitável: até que ponto podemos esperar que o jogador, isoladamente, seja capaz de resistir a tais estratégias sem qualquer forma de mediação externa?
A resposta não é trivial. De um lado, há quem defenda a responsabilidade individual, argumentando que o indivíduo é livre para escolher suas ações e arcar com as consequências (Friedman, 1962). De outro, estudos demonstram que ambientes cuidadosamente desenhados para explorar falhas cognitivas minam, de forma sistemática, a capacidade decisória e a autonomia do jogador, levando-o a decisões contrárias ao seu próprio bem-estar promotoras de externalidades negativas (Gainsbury et al. 2018). É nesse ponto que o argumento em prol de políticas públicas e regulamentações mais robustas da indústria de jogos ganha relevância como mecanismos de equilíbrio entre liberdade individual e proteção dos direitos do consumidor.
Nesse contexto, é fundamental que a sociedade civil identifique e discuta as práticas de "dark nudges" e exija das plataformas de cassinos maior transparência e responsabilização. Medidas como clareza nas informações sobre ganhos e perdas e facilidades para encerrar um jogo podem ser importantes para reduzir os danos sociais sem eliminar o direito ao lazer e ao entretenimento. Embora o jogo possa ser uma atividade econômica legítima, ele não pode continuar operando em um terreno onde os ganhos astronômicos dos casinos online e dos seus influenciadores sociais se ampliam em detrimento da liberdade e a segurança dos apostadores.
REFERÊNCIAS
BEHAVIORAL INSIGHTS TEAM. Redesigning gambling websites to reduce harm: five recommendations for immediate action. [S. l.]: Behavioral Insights Team, 2022. Disponível em: https://www.bi.team/wp-content/uploads/2022/11/Redesign-gambling-websites-to-reduce-harm-Five-recommendations-for-immediate-action.pdf. Acesso em: 21 maio 2025.
CAVALCANTE, F. R. Em busca de mais excitação: reflexões acerca das apostas esportivas. Movimento, v. 30, p. e30010, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.22456/1982-8918.132978. Acesso em: 21 maio 2025.
CHAVES, L. R. Quase 11 milhões de brasileiros apostam de modo a pôr em risco a saúde e as finanças. Revista Pesquisa Fapesp, São Paulo, 2024. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/quase-11-milhoes-de-brasileiros-apostam-de-modo-a-por-em-risco-a-saude-e-as-financas/. Acesso em: 21 de maio de 2025.
FOXALL, G. R.; SIGURDSSON, V. When Loss Reward: The Near-Miss Effect in Slot Machine Gambling. Analysis of Gambling Behavior, v. 6, n. 1, art. 2, 2012. Disponível em: https://repository.stcloudstate.edu/agb/vol6/iss1/2. Acesso em:21 de maio de 2025.
FRIEDMAN, M. Capitalism and freedom. Chicago: University of Chicago Press, 1962.
GAINSBURY, S. M.; TOBIAS-WEBB, J.; SLONIM, R. Behavioural economics and gambling: A new paradigm for approaching harm-minimisation. Gaming Law Review, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1089/glr2.2018.22106. Acesso em: 21 maio 2025.
KAHNEMAN, D.; SLOVIC, P.; TVERSKY, A. Judgment under uncertainty: heuristics and bias. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.
NEWALL, P. W. S. Dark nudges in gambling. Addiction Research & Theory, v. 27, n. 2, p. 65–67, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1080/16066359.2018.1474206. Acesso em: 21 de maio 2025.


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