As eleições refletem realmente a vontade do povo?
- Marcelo Samos
- 16 de jun.
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Por Marcelo Samos
A ideia de que as eleições refletem fielmente a vontade coletiva dos indivíduos é um dos pilares da democracia representativa moderna. No entanto, desde o século XVIII, teóricos como Condorcet já mostravam que a agregação de preferências individuais pode levar a resultados paradoxais, como a ausência de uma escolha coletiva coerente mesmo quando todos os indivíduos têm preferências bem definidas (KOEHLER; MOSSEL, 2021). Esse tipo de inconsistência, conhecido como paradoxo de Condorcet, ganhou robustez formal com o Teorema da Impossibilidade de Arrow, que demonstra a inexistência de um método de votação que satisfaça simultaneamente critérios mínimos de justiça, racionalidade e representatividade (ARROW, 1951). Embora alguns interpretem o teorema como uma condenação da escolha coletiva racional, Amartya Sen defende que a aparente impossibilidade é consequência de uma base informacional excessivamente limitada — e que, ao ampliar os critérios considerados na deliberação social, é possível construir decisões coletivas mais justas (SEN, 2021). Estudos recentes, como os de Koehler e Mossel (2021), mostram inclusive que, mesmo em contextos em que os eleitores não agem de forma independente, há uma probabilidade significativa de ocorrência de resultados intransitivos, reforçando que o problema é estrutural. Assim, este artigo propõe-se a refletir criticamente sobre o ideal democrático da representação da vontade popular, à luz de paradoxos formais, modelos teóricos e argumentos normativos que colocam em xeque a suposição de que votar é decidir de maneira racional e coletiva.
Durante a Revolução Francesa, o marquês de Condorcet — filósofo, matemático e defensor fervoroso dos direitos civis — propôs que o raciocínio quantitativo poderia contribuir para decisões coletivas mais racionais e justas. Ao tentar estabelecer critérios objetivos para selecionar a “melhor” opção entre várias alternativas em eleições e jurados, Condorcet desenvolveu uma abordagem sistemática baseada em comparações pareadas entre candidatos. No entanto, suas investigações revelaram um problema inquietante: mesmo quando as preferências individuais são coerentes e bem ordenadas, o resultado coletivo pode ser cíclico e intransitivo — um fenômeno que ficou conhecido como o paradoxo de Condorcet (GEHRLEIN, 2002). Essa descoberta pioneira inaugurou o campo da teoria da escolha social e antecipou, em mais de um século, questões fundamentais sobre coerência e justiça nos sistemas eleitorais, que seriam posteriormente formalizadas em teoremas matemáticos.
O paradoxo de Condorcet pode ser compreendido a partir de um exemplo simples com três eleitores e três candidatos: A, B e C. Suponha que o primeiro eleitor prefira A a B e B a C; o segundo prefira B a C e C a A; e o terceiro prefira C a A e A a B. Ao comparar A com B, A vence por 2 a 1; ao comparar B com C, B vence por 2 a 1; mas, surpreendentemente, ao comparar C com A, C também vence por 2 a 1. Surge, assim, uma preferência coletiva cíclica: A vence B, B vence C, e C vence A — contrariando o princípio de transitividade que se espera de decisões racionais. Esse resultado indica que, em certas configurações de preferências, não existe um vencedor absoluto sob o critério de maioria simples. E, mais impressionante, é que esse problema não é apenas uma curiosidade teórica: estudos demonstram que tais ciclos podem surgir com frequência considerável em eleições reais (VAN DEEMEN, 2014; GEHRLEIN, 2002). O paradoxo revela, portanto, uma falha dos sistemas de votação baseados em decisões binárias sucessivas e levanta dúvidas sobre a legitimidade de determinados resultados eleitorais, especialmente quando o sistema ignora as comparações entre pares em favor de um único voto por eleitor.
Diante das inconsistências reveladas pelo paradoxo de Condorcet, diversos pesquisadores passaram a propor métodos alternativos de votação que buscam capturar de forma mais fiel as preferências dos eleitores. Entre eles, destacam-se o método de Condorcet, que elege o candidato que venceria todas as disputas diretas contra os demais, caso exista, e o método de Borda, no qual os eleitores atribuem pontuações às opções, permitindo uma análise mais rica da ordem de preferência (MASKIN; FOLEY, 2025). Ambos os métodos visam evitar distorções produzidas pelo sistema de voto uninominal, como aquele adotado no Brasil para cargos do Executivo, em que cada eleitor vota em apenas um candidato e, no segundo turno, a escolha se reduz aos dois mais votados. A crítica central a esse modelo reside em sua tendência a desconsiderar a intensidade das preferências e a promover estratégias de voto útil, especialmente em contextos polarizados. Além disso, como argumenta Peters (2017), mesmo sistemas que incorporam o critério de Condorcet podem ser vulneráveis a manipulações estratégicas, como o chamado “paradoxo da reversão de preferências”, no qual um eleitor consegue alterar o resultado da eleição ao inverter completamente sua ordem de preferência.
A discussão sobre a racionalidade coletiva alcançou novo patamar com o trabalho seminal de Kenneth Arrow, que demonstrou matematicamente que nenhum sistema de votação pode satisfazer simultaneamente um conjunto mínimo de critérios democráticos — como universalidade, ausência de ditador, independência de alternativas irrelevantes, e respeito à unanimidade — quando existem três ou mais alternativas (ARROW, 1951). Conhecido como o Teorema da Impossibilidade, esse resultado provocou forte impacto na teoria da escolha social, ao revelar um limite lógico para a construção de decisões coletivas perfeitamente justas. No entanto, a leitura desse teorema foi contestada por pensadores como Amartya Sen, que argumenta que a impossibilidade apontada por Arrow decorre, na verdade, de uma restrição excessiva na base informacional do processo decisório. Para Sen (apud MORAES; SILVA, 2021), ao ampliar as dimensões consideradas — incluindo liberdades individuais, capacidades e contextos sociais —, torna-se possível formular critérios de escolha coletiva mais sensíveis à justiça e à equidade. Assim, o que Arrow demonstra não é a falência da democracia, mas sim a necessidade de repensar quais informações importam e quais valores queremos preservar ao tomar decisões públicas.
A ideia de que as eleições representam fielmente a vontade popular revela-se, diante das evidências matemáticas e filosóficas, uma crença idealizada. O Paradoxo de Condorcet e a impossibilidade de Arrow mostram que a agregação de preferências individuais em decisões coletivas está sujeita a limitações lógicas e estruturais, mesmo em contextos em que todos os eleitores agem racionalmente. Embora esses resultados não invalidem a democracia, eles nos convidam a encará-la com mais rigor e responsabilidade. Como propôs Amartya Sen, a chave não está em abandonar a escolha coletiva, mas em expandir as bases sobre as quais ela é construída, incorporando aspectos como liberdade, equidade e contextos sociais ao debate institucional. Nesse sentido, a democracia não deve ser vista como um sistema perfeito, mas como um processo sempre em construção — um campo de disputa contínua entre formas de decidir, representar e incluir.
Marcelo Samos é granduando em Ciências Econômicas na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
REFERÊNCIAS
ARROW, Kenneth J. Social Choice and Individual Values. 2. ed. New Haven: Yale University Press, 1951.
BABICHENKO, Yakov; DEAN, Oren; TENNENHOLTZ, Moshe. Paradoxes in Sequential Voting. arXiv preprint, arXiv:1807.03979v2, 2019. Disponível em: https://arxiv.org/abs/1807.03979. Acesso em: 13 jun. 2025.
GEHRLEIN, William V. Condorcet’s paradox and the likelihood of its occurrence: different perspectives on balanced preferences. Theory and Decision, v. 52, n. 2, p. 171–199, 2002.
KOEHLER, Frederic; MOSSEL, Elchanan. A Phase Transition in Arrow’s Theorem. arXiv preprint, arXiv:2004.12580v3, 2021. Disponível em: https://arxiv.org/abs/2004.12580. Acesso em: 13 jun. 2025.
MORAES, Fernanda; SILVA, Maria Tereza. Sen e o dilema da escolha social: entre o ideal de justiça e o teorema da impossibilidade. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 35, p. 1–23, 2021. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rbcp/article/view/181863. Acesso em: 13 jun. 2025.
MASKIN, Eric; FOLEY, Duncan. Condorcet Voting. 2025. Working paper, Harvard University. Disponível em: https://scholar.harvard.edu/files/maskin/files/condorcet_voting.pdf. Acesso em: 13 jun. 2025.
PETERS, Dominik. Condorcet’s Principle and the Preference Reversal Paradox. arXiv preprint, arXiv:1707.08760v1, 2017. Disponível em: https://arxiv.org/abs/1707.08760. Acesso em: 13 jun. 2025.
SANTOS, Fabiano. Reavaliando a contribuição do ‘Paradoxo’ de Condorcet para a moderna análise da política. Revista Sociedade e Estado, v. 35, n. 2, p. 409–428, 2020.
SEN, Amartya. Development as Freedom. New York: Alfred A. Knopf, 1999. (Utilizado como referência interpretativa complementar à crítica a Arrow no artigo de Moraes e Silva, 2021.)
VAN DEEMEN, Adrian. On the empirical relevance of Condorcet’s paradox. Public Choice, v. 161, n. 1–2, p. 1–12, 2014.


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