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Mais que um samba

  • Elton Duarte Batalha
  • 2 de jul. de 2024
  • 3 min de leitura

Por Elton Duarte Batalha


O samba “Pelo telefone”, registrado por Donga e tido como o primeiro a ser gravado no Brasil, em 1916, sintetiza de forma magistral algumas das características da sociedade que impactam a economia e a vivência democrática nacional, ainda que tais fatores muitas vezes não sejam percebidos em pequenos atos do cotidiano. Além de ser um marco da história da música brasileira, a obra sob análise reflete elementos que parecem incrustados nas relações sociais que ocorrem no país.


O início da canção diz: “o chefe da polícia / pelo telefone / mandou me avisar/ que lá na carioca / tem uma roleta / para se jogar”. Em um primeiro contato, é óbvio o estranhamento causado pela situação em que uma autoridade deixa um cidadão ciente da possibilidade de dedicar-se a uma espécie dos chamados jogos de azar, os quais historicamente causam debates do ponto vista ético e nem sempre tiveram sua realização legalmente permitida. A que se deve tal estranhamento? Deveria existir essa sensação em um país como o Brasil? São questões que merecem análise.


Primeiramente, é evidente que o desconforto decorre da existência de uma relação promíscua entre a figura representativa da autoridade e a atividade que levanta debate sobre sua natureza moral. Além disso, a naturalidade com que atividades como essa são aceitas socialmente reforça a sensação de que há um desvio ético verificável historicamente no país. Nesse sentido, de modo exemplificativo, basta notar a ligação intrínseca existente entre o jogo do bicho e o financiamento da festa de carnaval em determinadas localidades do Brasil.


A questão que surge é: o estranhamento deveria existir neste país? Não estaria o convívio com a ilegalidade lamentavelmente consagrado no cotidiano nacional, a ponto de a sociedade não mais se indignar (de forma majoritária) com quaisquer atos desviantes na vida pública? A impressão que se tem é que a comunidade parece estar moralmente anestesiada diante da imensa quantidade de atitudes que contrariam os parâmetros éticos, como visto nas discussões acerca das famigeradas rachadinhas, supostamente praticadas por políticos conhecidos nacionalmente e dos mais variados matizes ideológicos. O patrimonialismo, fenômeno tão conhecido pelos estudiosos da história brasileira, é uma chaga que teima em não fechar, fato que pode ser pensado sob o prisma da impunidade e da naturalização com que é encarado pela coletividade nacional.


Longe de querer diminuir o valor de uma canção que apenas refletia a realidade da época (embora ainda esteja presente, mesmo que em outras atividades), chama atenção a lição sociológica do assunto e os potenciais efeitos econômicos nocivos de tais condutas nela retratadas. Diante da perda financeira decorrente de práticas ilegais que ocorrem impunemente, quanto capital deixa de ser investido no país por falta de segurança jurídica? Que nível de desenvolvimento econômico o Brasil poderia obter se os regramentos nas mais diversas áreas fossem rigidamente cumpridos? Afinal, um país que naturaliza a prática de contravenções ou de quaisquer outros comportamentos que contrariem a lei não parece ser um lugar que irá respeitar os contratos feitos com os grandes investidores estrangeiros.


A cultura de uma localidade não muda rapidamente e depende de instituições fortes para que isso ocorra, as quais devem ser aptas a criar e implementar regras que componham uma estrutura inteligível e eficiente para o funcionamento adequado da sociedade e para realização segura de investimentos, propiciando o desenvolvimento da comunidade. O samba sob análise, representativo de uma espécie de canção tipicamente brasileira, traz à tona o convívio promíscuo da coletividade e da autoridade com a ilegalidade, outra característica marcadamente nacional. As consequências para a economia, dados os custos criados pela insegurança jurídica causada pela ilegalidade, são evidentes. Mais que um samba, essa canção registra a estranha relação do brasileiro com a ilegalidade, obstáculo importante para a evolução do país, inclusive sob o prisma econômico.


  • Elton Duarte Batalha é Professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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